sábado, 17 de janeiro de 2009

Sobreviventes como Marta e Maria


Au centre

Nestes últimos dias recebi, pelo menos, cinco notícias de falecimentos. Destes, só um não foi de um irmão ou irmã de alguém.
Pode parecer estranho eu dizer isso, mas saber que tantas pessoas perderam seus irmãos ou irmãs me abala. E muito. Desde antes de perder o meu irmão, eu me sentia inconsolável. Por quê? Não sei. Antes, acho que era por imaginar a tristeza que é a vida sem um irmão ou irmã com quem a gente cresceu, aprendeu a viver. Depois, foi a constatação desta tristeza na minha própria alma. Perder um filho ou filha é uma dor sem igual - sei disso por ver pais e mães perderem seus filhos, mas também por ver a dor dos meus pais. Realmente é algo sem precedentes. Por vários motivos que todos nós conhecemos, o mais forte talvez por fugir à "ordem natural das coisas".

O
"natural", para o ser humano, é que os mais novos enterrem os mais velhos. Mas quando a situação se inverte, parece que a Terra saiu do seu eixo, a vida saiu dos trilhos.
Porém eu me lembro que a minha mãe, pouco depois da morte do meu irmão, me disse algo que eu nunca esqueci - acho que ela, na sua dor, teve a perfeita compreensão do que eu estava passando. Ela é filha única. E ela me disse que não imaginava a dor de perder um irmão. O meu pai sabe o que é isso. Ele, ainda criança, perdeu a irmã mais nova. E é uma dor que ele carrega até hoje. Perder um irmão ou uma irmã é perder um pouco da própria essência. Lembro-me que, no início, eu me sentia decompor junto com meu irmão. Eu o vi nascer, vivi a vida inteira ao lado dele, e o vi morrer. É desesperador, é como se a nossa própria carne tivesse morrido também. Eu também me senti culpada por não ter "seguido a ordem natural das coisas". Afinal, eu sou a mais velha, eu deveria ir primeiro. Isto, obviamente, fez parte do meu processo de luto - a coisa mais desaconselhável é se privar do luto. É preciso viver toda essa dor para, depois, poder sair fortalecido(a).

Um dia, logo após uma missa que mandamos celebrar em memória dele, eu entendi o seguinte: primeiro de tudo, ele estava ressuscitado, como Lázaro. Depois, entendi que, assim como ele seguia seu rumo, um rumo diferente do meu, agora, a minha vida deveria continuar. Eu deveria seguir o meu rumo também. Caminhar sem ele foi extremamente difícil, no começo, mas hoje eu percebo que Deus tem um plano para cada um de nós. O plano de Deus para o meu irmão era que ele retornasse aos Seus braços antes de todos nós, porque ele tem outras missões a cumprir. Em Deus.

O plano de Deus para mim, dia-a-dia eu vou descobrindo. Entendi que precisava estudar francês, me formar, me tornar professora. Entendi que precisava evangelizar de uma forma nova, pela internet. Entendi que Deus me reserva surpresas todos os dias. Entendi, sobretudo, que Ele queria fazer de mim uma pessoa mais forte, realista, "pé no chão" mesmo. Ele queria que eu crescesse, que eu tomasse as rédeas das situações que me amedrontavam antes. Deus queria que eu entendesse o valor de ser uma "sobrevivente" à tristeza, à depressão, à dor da perda, assim como aconteceu com Marta e Maria, as irmãs de Lázaro.

Hoje em dia, eu sinto que o túmulo do meu irmão está vazio. Como ficou o de Lázaro após ser ressuscitado por Jesus. Como o túmulo do próprio Jesus, após Sua ressurreição.

Com carinho, em Jesus,
para Ana Cláudia, Rita, Jorge, Ana, D. Isa. Que Deus console vocês, sempre...


Gisele Pimentel

gisele.pimentel@gmail.com



Fonte:

http://priere.la.autres.free.fr/saint_lazare.jpg

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O Batismo



Meu amado, minha amada:

Nesse domingo comemoramos o Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Muitas pessoas já me perguntaram por que Jesus precisou se batizar. Realmente, é um tanto estranho pensarmos que o nosso Deus Salvador, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, passou pelo Batismo como todos nós, cristãos. Afinal, por que Jesus entrou na fila para ser batizado por Seu primo, São João Batista?

Segundo o Catecismo da Igreja Católica, "o Batismo de Jesus é, da parte dele, a aceitação e a inauguração de sua missão de Servo sofredor. Deixa-se contar entre os pecadores; é, já, 'o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo' (Jo 1,29), antecipa já o 'Batismo' de sua morte sangrenta. Vem, já, 'cumprir toda a justiça' (Mt 3,15), ou seja, submete-se por inteiro à vontade de seu Pai: aceita por amor este batismo de morte para a remissão de nossos pecados. A esta aceitação responde a voz do Pai, que coloca toda a sua complacência em seu Filho. O Espírito que Jesus possui em plenitude desde a sua concepção vem 'repousar' sobre Ele. Jesus será a fonte do Espírito para toda a humanidade. No Batismo de Jesus, 'abriram-se os Céus' (Mt 3,16) que o pecado de Adão havia fechado; e as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da nova criação." (CIC § 536)

Será que já pensamos, eu e você, que a cada criança batizada, é exatamente isto que acontece? O Espírito Santo vem abrir os Céus novamente para que o Pai acolha mais um filho (ou filha) que acaba de nascer, espiritualmente, para Ele. E, então, o Pai repete o que disse no momento do Batismo de Jesus: "Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado" (Mc 1, 11).

Quero agora partilhar com você, a este propósito, uma linda reflexão de um Patriarca da nossa Igreja, São Sofrônio. Vamos tirar cinco minutinhos para meditar a respeito deste tema? Em seguida, apresento-lhe o autor do texto de hoje.

"Hoje o Céu se abriu, o Espírito desceu sobre Jesus e a Voz do Pai domina as águas :
Tu és o meu Filho muito amado"

(Versículo do Aleluia) - São Sofrônio de Jerusalém

Hino do Ofício Bizantino da Teofania (Oração das Igrejas de rito Bizantino, t. 2, pp. 280-281)

"Hoje nasceu o Sol sem ocaso e o mundo está iluminado com a luz do Senhor. [...] Hoje as nuvens derramam sobre a humanidade uma rosácea celeste de justiça. Hoje Aquele que não foi criado permite que Aquele que criou Lhe imponha a mão. Hoje o profeta e precursor chega antes do seu Mestre, mas fica ao seu lado, a tremer, ao ver a condescendência de Deus para conosco.

Hoje as marés do Jordão transformam-se em fonte de salvação na presença do Senhor. [...] Hoje as ofensas dos homens são apagadas nas águas do Jordão. Hoje o paraíso abre-se diante da humanidade e o Sol da justiça brilha sobre nós (Mal 3, 20) [...] Hoje o Mestre dispõe-Se a ser batizado para salvar o gênero humano. Hoje Aquele que não Se pode baixar inclina-Se diante do Seu servidor para nos livrar da escravatura. Hoje adquirimos o Reino dos Céus, pois o Reino do Senhor não terá fim.

Hoje a terra e o céu partilham da alegria do mundo e o mundo está cheio de júbilo. 'Ao Vos verem, as águas, oh Deus, as águas tremeram' (Sl 77, 17). 'O Jordão voltou para trás' (Sl 113, 3) ao ver o fogo da divindade vir até ele em corpo e descer à sua corrente. O Jordão voltou para trás ao ver o Espírito Santo descer do céu transformado em pomba e pairar sobre Ti. O Jordão voltou para trás ao ver o Invisível tornar-Se visível, o Criador fazer-Se carne, o Senhor tomar a aparência de um escravo. [...] As nuvens fizeram escutar a sua voz na admiração que lhes causava a vinda a nós da Luz da Luz, do Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.

É a festa do Senhor que nós vemos hoje no Jordão. Vemo-Lo deitar ao Jordão a morte que nos valeu a desobediência, o aguilhão do erro, as correntes do inferno e dar ao mundo o batismo da salvação."


Hagiografia de São Sofrônio de Jerusalém (560-639 d.C.), Monge, Bispo

Nasceu em Damasco, por volta do ano 560 d.C. Provavelmente trabalhou como professor de Retórica, até que, embora jovem, abraçou a vida monástica. Passou vinte anos sob a direção de São João Mosco. Juntos visitaram vários monastérios do Egito, com o propósito de chegar a Roma. Já na Cidade Eterna, São João Mosco veio a falecer no ano de 619 d.C. São Sofrônio decidiu, então, regressar à Palestina. Entre 633 e 634 d.C., foi eleito Patriarca de Jerusalém, mostrando-se, desde então, um pastor zelozo do seu rebanho.

A biografia de São Sofrônio poderia concentrar-se em dois pólos de interesse: sua sede de santidade e sua integridade doutrinal, que o levou a sofrer muito por defender a fé católica frente à heresia do *monotelismo. Estas duas características são bem evidentes na sua obra literária, a partir da qual temos algumas obras que poderiam ser chamadas "entretenimento", alguns hinos e vários escritos hagiográficos, como a "Vida dos Santos egípcios Ciro e João", alguns fragmentos de uma biografia do Patriarca alexandrino João, o Caridoso, composta em parceria com São João Mosco.

No mesmo ano de sua morte, 638, viu com imensa tristeza que a Cidade Santa caiu nas mãos dos muçulmanos, por obra do Califa Omar. (LOARTE)

*Monotelismo

O monotelismo foi uma Heresia surgida na Igreja Católica Ortodoxa quando a teologia cristológica ainda estava mal definida. Opôs-se ao Nestorianismo (que afirmava haver em Jesus Cristo duas pessoas, a divina e a humana, o que foi condenado pelo Concíli de Éfeso (431).

Eutiques, arquimandrita de um mosteiro de Constantinopla, defendeu que, havendo uma só pessoa em Jesus Cristo, também devia haver uma só natureza, admitindo que a humana fora absorvida pela divina. A discussão foi turbulenta e a questão só foi definitivamente resolvida no Concílio de Calcedônia (451), que definiu haver em Jesus Cristo duas naturezas, a divina e a humana, subsistindo na única pessoa divina do Verbo encarnado. Esta definição não convenceu diversas comunidades, que continuaram a aderir ao monotelismo, algumas até hoje.

Tempos depois, o patriarca Sérgio de Constantinopla, com aa intenção de congraçar os monofisitas, proclamou que em Jesus Cristo, embora havendo duas naturezas, só havia uma vontade, pela identificação perfeita da vontade humana com a vontade divina, o que ficou conhecido na história das heresias por monotelismo. Mais que heresia, tratava-se de afirmação equívoca, porquanto da identificação do querer de Jesus com o querer divino é compatível com a existência nele de duas vontades ontologicamente distintas. A questão ficou esclarecida no Terceiro Concílio de Constantinopla (681).

O Salvador e as Crianças

Meu amado, minha amada:

Neste domingo da Epifania do Senhor, ou seja, da Sua Manifestação aos povos, quando o Pai do Céu guia os Reis Magos até Belém para que eles possam conhecer Jesus, o Verbo feito carne, o Salvador que veio PARA TODOS. O que isso significa? O Messias, o Rei dos Judeus, é também o Rei de todos nós, que veio para nos salvar INDISTINTAMENTE. Mas como? Também àqueles que não crêem? Àqueles que deliberadamente cometem o mal? Até mesmo aos que nunca ouviram falar d'Ele?

Neste trecho do Evangelho da Epifania, vemos um momento de grande alegria e esperança para todos os seres humanos, porque sim, Jesus veio para salvar TODOS os filhos e filhas de Deus, não importa quem sejam, o que tenham feito, onde estejam, se já ouviram ou não falar d'Ele. A Salvação trazida por Jesus é ilimitada, como o Amor da Santíssima Trindade da qual Jesus é a Segunda Pessoa.

Porém, este trecho também nos dá um sinal: os Reis Magos não podem voltar a Herodes e contar-lhe sobre o Menino, pois os planos do rei são terríveis, e podem pôr em risco o plano da Salvação. Então, os Reis Magos se vão por outro caminho. Mais adiante, veremos que, realmente, Herodes promoveu um macabro infanticídio em sua busca por Jesus, pois ele acreditava que seu trono corria o risco de lhe ser tomado pelo Rei dos Judeus que acabara de nascer.

Atualmente, muitas crianças são assassinadas de várias formas todos os dias, seja fisicamente, seja moral e/ou emocionalmente. É fácil nos condoermos quando ouvimos notícias de crianças assassinadas, como da mesma forma que nos chocamos ao pensar no assassinato das crianças inocentes, cometido por Herodes. Mas... E quando sabemos que mais uma criança foi abortada? E quando ouvimos alguém comentar que seus filhos estão sozinhos em casa, ou ficam perambulando pelas ruas, porque os responsáveis "não têm tempo para eles"? Ou então, quando alguém comenta, orgulhosamente, que os filhos são criados "na base do cinto e do chinelo", porque "criança não sabe de nada"? É, "assassina-se" uma criança de várias m
aneiras.

Eu não tenho filhos, mas tenho uma irmã caçula, que tem onze anos. Ela é como uma filha para mim. Às vezes, quando fica aqui em casa, comigo, eu procuro dar toda atenção a ela. Mas, reconheço, às vezes dou mais importância a tarefas que podem "ficar para depois" do que a ela. Eu reconheci nas palavras da oração abaixo, de uma criança anônima (para nós, mas bem conhecida para Deus), palavras que a minha irmã já me disse algumas vezes... Sinceramente, eu não quero que ela precise repeti-las.

Amedeo Modigliani, "Garçon à la veste bleue" (Menino com veste azul), 1918.


Oração de um filho aos seus pais

Eu gostaria de ser Félix, nosso gatinho,
para ser segurado, como ele, nos seus braços
cada vez que vocês chegam em casa...

Eu às vezes gostaria de ser um aparelho de mp3
para me sentir ouvido por vocês dois,
sem nenhuma distinção,
tendo só minhas palavras aos seus ouvidos,
sussurrando o eco da minha solidão...

Eu adoraria ser um jornal,
para que vocês tivessem tempo, todo os dias,
de me perguntar pelas minhas novidades.

Eu amaria ser uma televisão
para nunca ir dormir, à noite,
sem ter sido, ao menos uma vez,
visto com interesse...

Eu gostaria muito de ser um time de futebol
para você, papai, para te ver gritar de alegria
após cada uma das minhas vitórias e
uma novela para você, mamãe,
para que você pudesse enxergar as minhas emoções...

Pensando bem, eu só gostaria de ser uma coisa:
um presente inestimável para vocês dois.
Não comprem nada para mim no meu aniversário,
deixem-me somente sentir
que EU SOU SEU FILHO.

Oração escrita por uma criança "anônima".


gisele.pimentel@gmail.com

O Mistério do Natal, por Edith Stein

Meu amado, minha amada:

Há quanto tempo, não é? Não, eu não me esqueci do querido rebanho que acompanha o site Rio de Deus. Acontece que eu estou num momento maravilhoso da minha caminhada, ou melhor, repleta de trabalhos e estudando como nunca! Às vezes não tenho tempo nem para pensar na vida!

Peço perdão pelo meu sumiço, mas também trago boas novas. O comércio, como bem sabemos, já anuncia a todo vapor o Natal. "Compre isso, compre aquilo e aquilo outro também!!!" Não é? A sociedade já vai "entrando no clima natalino", muitas vezes deixando que as crianças pensem que o Natal é o aniversário do Papai Noel. É sério! Eu já ouvi isso! E quando a gente tenta explicar o verdadeiro sentido da celebração, o que acontece? Geralmente as pessoas torcem o nariz, saem de perto, dizem que estão ocupadas demais para ouvir "essas estórias" (estória no sentido de fábula mesmo).

E nós? Como nós ficamos? O que nós, que cremos (ou afirmamos crer) em Cristo, podemos fazer para reverter esta situação? Muitos dizem "Ah, mas falar é fácil, isso tudo é teoria; na prática, ninguém faz o que fala". Será que é tão difícil assim pôr em prática essa "teoria"? Ou não seria esta "teoria" o resultado da vivência concreta no amor de Deus por nós?

O Natal está chegando, sim, e por isso eu quero apresentar-lhe Edith Stein. Filósofa, Doutora em Fenomenologia, judia, alemã. Viveu no início do Século XX. Um dia, Doutora Edith teve um encontro, na prática, que mudou toda a sua existência. Converteu-se à religião católica, abraçou a vocação carmelita e morreu na câmara de gás do campo de concentração de Auschwitz, em 1942.

Convido você a entrar agora na sala de aula da Doutora Edith, ou melhor, Santa Teresa Benedita da Cruz, pois ela preparou uma aula a respeito do nascimento do nosso Senhor Jesus Cristo. Venha, guardei um lugar especialmente para você!



1. ENCARNAÇÃO E HUMANIDADE

Quando os dias ficam cada vez mais curtos quando caem os primeiros flocos de neve (normal, no inverno alemão), então surgem suavemente os primeiros pensamentos natalinos. Destas simples palavras emana um encanto ao qual é difícil um coração ficar indiferente. Mesmo os que têm uma fé diferente, ou os infiéis, para os quais a antiga história da criança de Belém nada significa, preparam-se para a festa e pensam em como acender um raio de alegria em toda parte. É como uma correnteza quente de amor perpassando toda a terra, meses e semanas antes. Uma festa de amor e de alegria. Esta é a estrela para a qual todos se dirigem nos primeiros meses de inverno.

Para os cristãos e, principalmente, para os cristãos católicos, significa algo mais: a estrela os conduz para o presépio onde está a criança, que traz a paz para a terra. A arte cristã apresenta-nos isto através de inúmeros quadros formosos; cantos antigos nos falam sobre isso, fazendo ecoar todo o encanto da infância. Para quem vive a liturgia da Igreja, os sinos do "Rorate Caeli" [Orvalhai ó céus] e os cânticos do Advento despertam no coração uma santa saudade; para quem está unido à fonte inesgotável da santa liturgia, o grande profeta da Encarnação diariamente bate à porta com suas poderosas palavras de advertências e promessas: "Céus, gotejai lá de cima, e que as nuvens chovam o justo! O Senhor já está perto! Vinde adoremo-Lo! Vem Senhor, não tardeis mais! Jerusalém, regozija, com grande alegria, pois o teu Salvador vem a ti".

De 17 a 24 de dezembro, as grandes Antífonas do "Ó" conclamam para o Magnificat (ó Sabedoria, ó Adonai, ó Raiz de Jessé, ó Chave de Davi, ó Sol Nascente, ó Rei dos Reis, ó Emanuel), de forma mais saudosa e enérgica: "Vinde, para nos libertar." E, sempre mais promissora, ecoa: "Veja, tudo se completou" (no último domingo do Advento); e, finalmente: "Hoje sabereis que o Senhor virá e amanhã contemplareis a sua glória".

Sim, quando à noite as luzes clareiam as árvores enfeitadas e os presentes são trocados, o desejo incompleto aponta para um outro clarão de luz. Os sinos tocam para a missa do galo, e se renova nos altares, enfeitados de luzes e de flores, o milagre da noite santa: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós". Agora sim, chegou o momento da feliz redenção.


Meu amado, minha amada:

Dando continuidade à aula que Santa Teresa Benedita da Cruz nos dá a respeito do Natal, aqui está uma linda reflexão a respeito da importância da escolha que fazemos quando acolhemos (ou não) o Cristo que se fez Homem para nos retirar das trevas.

Lendo este texto, eu paro e penso em todos os momentos em que tenho agido como Santo Estevão, São João ou os reis magos, mas também naqueles em que ajo como os doutores da lei. Concluo que preciso procurar urgentemente um sacerdote e fazer uma boa confissão...


"A fuga para o Egito", Simone Cantarini, 1636
Óleo sobre tela - Museu do Louvre - Paris – França


2. O SEGUIMENTO DO FILHO DE DEUS FEITO HOMEM

Cada um de nós talvez já tenha experimentado tal felicidade natalina. Mas, até aqui, o céu e a terra não se uniram. Também hoje a estrela de Belém é uma estrela na noite escura. Já no segundo dia, a Igreja tira as vestes festivas e se reveste com a cor do sangue e, no quarto dia, de cores enlutadas.

Estêvão, o protomártir, aquele que primeiro seguiu o Senhor para a morte, e os santos inocentes, as criancinhas de Belém de Judá, mortas cruelmente por mãos de algozes, estão ao redor da Criança no presépio. O que isto quer dizer? Onde está o júbilo das potências celestes? Onde está a tranqüila bem-aventurança da noite santa? Onde está a paz na terra? "Paz na terra aos homens de boa vontade".

Mas nem todos têm boa vontade. Por isso, o Filho do Pai Eterno nasceu da glória celeste, pois o mistério do mal encobriu a terra com a escuridão. Trevas cobriram a terra e Ele veio como luz que iluminou as trevas, mas as trevas não O conheceram. Àqueles que O acolheram, Ele trouxe a luz e a paz; a paz com o Pai do céu, a paz com todos que, com Ele, são filhos da luz e filhos do Pai do céu, e a profunda paz do coração; mas não a paz com os filhos das trevas. Para eles, o Príncipe da paz não traz a paz, mas sim a espada. Para eles o Senhor é a pedra de tropeço, contra quem atacam e na qual serão destruídos. Esta é uma grande e séria verdade, que não podemos encobrir por causa do encanto poético da Criança no presépio. O mistério da encarnação e o mistério do mal caminham juntos. Contra a luz que vem do alto, contrasta a noite do pecado, escura e tenebrosa.

A criança no presépio estende as mãos, e o seu sorriso parece dizer o que mais tarde pronunciaram os lábios do Filho do Homem: "Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo". E aqueles que seguem o seu chamado, os pobres pastores, aos quais nos campos de Belém o resplendor do céu e a voz do anjo anunciaram a Boa Nova, responderam confiantes: "Vamos a Belém", e puseram-se a caminho.

Os reis, vindos do oriente longínquo, seguiram, na mesma fé simples, a estrela milagrosa para eles. Através das mãos da criança, correu o orvalho da graça, e "eles exultaram com grande alegria". Estas mãos dão e, ao mesmo tempo, cobram: vós, sábios, despojai-vos de vossa sabedoria e tornai-vos simples como crianças; vós, reis, entregai vossas coroas e vossos tesouros e inclinai-vos, humildemente, diante do Rei dos reis; aceitai, sem hesitação, os fardos, dores e pesares exigidos pelo vosso serviço; de vós crianças, que não podeis ainda oferecer nada gratuitamente, tiram a vossa tenra vida, antes dela ter propriamente começado: ela não pode servir melhor do que ser sacrificada ao Senhor da vida.

"Siga-me" – dessa maneira se expressaram as mãos do menino, como mais tarde repetirá com os lábios o Mestre. Assim foi dito ao discípulo a quem o Senhor amava. E São João, o jovem com o coração puro de criança, seguia sem perguntas: Para onde? E para quê? Ele deixou a barca do pai e seguiu o Senhor em todos os caminhos até ao Gólgota.

"Siga-me" – também entendeu o jovem Estêvão. Ele seguiu o Senhor na luta contra os poderes das trevas, a cegueira da descrença obstinada; ele deu testemunho do Senhor com sua palavra e com seu sangue; ele O seguiu também em seu Espírito, no Espírito do Amor, que combate contra o pecado, mas que ama o pecador, e ainda na morte intercede diante de Deus pelos assassinos. São Personagens de luz, que rodeiam o presépio: os santos tenros inocentes, os simples e fiéis pastores, os reis humildes, Estêvão, o discípulo entusiasmado e João, o discípulo predileto. Todos eles seguiram o chamado do Senhor.

Em oposição a eles se encontram, na noite da dureza e cegueira incompreensíveis, os doutores da lei, que podem dar informações sobre o tempo e o lugar onde devia nascer o Salvador do mundo, mas não deduzem daí: "Vamos a Belém"; o rei Herodes pretende matar o Senhor da vida.

Diante da criança no presépio, os espíritos se dividem. Ele é o rei dos reis e o Senhor da vida e da morte. Ele fala o seu "Siga-me", e quem não for a seu favor, é contra Ele. Ele o diz também para nós, e nos coloca diante da decisão entre a luz e as trevas.



Meu amado, minha amada:

Hoje, na terceira parte da aula de Santa Teresa Benedita da Cruz (Doutora Edith Stein, filósofa), vemos a importância da encarnação de Jesus Cristo, nosso Deus para que tivéssemos acesso direto ao Pai. Isto só poderia se dar através de Seu Corpo Místico, que Ele entrega por amor a nós a cada consagração Eucarística. E que Ele nos oferece como Alimento espiritual e físico, para que, pela fé, possamos continuar dia-a-dia descobrindo a riqueza de fazermos parte da vida desse Deus maravilhoso. E aí vem a pergunta: até que ponto Ele também faz parte da nossa vida?



3. O CORPO MÍSTICO DE CRISTO

3.1 - SER UM COM DEUS

Para onde o Menino-Deus nos conduzirá nesta terra, isto não sabemos e não deveríamos perguntar antes do tempo. Só sabemos que para aqueles que amam o Senhor, todas as coisas servem para o bem. Os caminhos pelos quais o Senhor nos conduz, levam-nos para além desta terra. Ó troca maravilhosa! O criador do gênero humano encarnando-se, concede-nos a sua divindade. Por causa desta obra maravilhosa o Redentor veio ao mundo. Deus se tornou Filho do homem, para que os homens se tornassem filhos de Deus. Um de nós rompeu o laço da filiação divina, e um de nós devia reatar o laço, pagando pelo pecado. Nenhum da antiga e enferma raça podia fazê-lo. Devia ser um rebento novo, sadio e nobre.

Tornou-se um de nós e, mais do que isto: unido conosco. O maravilhoso no gênero humano é que todos somos um. Se fosse diferente, estaríamos lado a lado, como indivíduos autônomos e separados, e a queda de um não poderia ter se tornado a queda de todos. Podia ter sido pago e atribuído a nós o preço da expiação, mas não teria passado a sua justiça para os pecadores, e não teria sido possível nenhuma justificação.

Mas Ele veio, para tornar-se conosco um corpo místico. Ele, nossa cabeça, nós, os seus membros. Ponhamos nossas mãos nas mãos do Menino-Deus, pronunciando o nosso "Sim" ao seu "Siga-me". Então, nos tornamos Seus, e o caminho está livre, para que a sua vida divina possa passar para a nossa. Isto é o começo da vida eterna em nós. Não é ainda a visão beatífica de Deus na luz da glória, é ainda escuridão da fé, mas não é mais deste mundo, já é estar no Reino de Deus. Quando a bem-aventurada Virgem pronunciou o seu "Fiat", aí começou o Reino de Deus na terra e ela se tornou a sua primeira serva. E todos, que antes e depois do nascimento da criança, por palavras e obras, se declararam a seu favor: São José, Santa Isabel com seu filho e todos os que estavam ao redor do presépio, entraram no Reino de Deus.

Tornou-se diferente do que se pensou, conforme os salmos e profetas o reinado do divino rei. Os romanos continuaram os dominadores da terra, os sumo sacerdotes e os doutores da lei continuaram a subjugar o povo pobre. De forma invisível, cada um, que pertencia ao Senhor, trazia o Reino de Deus em si. O seu fardo terreno não lhe foi tirado, e sim outros fardos acrescentados; mas, o que ele trazia dentro de si, era uma força animadora, fazendo o fardo suave e a carga leve. Assim acontece ainda hoje com os filhos de Deus. A vida divina, acesa em sua alma, é a luz que veio nas trevas, o milagre da noite santa. Quem traz esta luz dentro de si, compreende quando se fala dela. Para os outros, porém, tudo o que se pode dizer a respeito, é um balbuciar incompreensível. Todo o evangelho de São João é um canto à luz eterna, que é amor e vida. Deus está em nós e nós nele, esta é a nossa parte no reino de Deus, para a qual a Encarnação colocou o alicerce.

3.2 - SER UM EM DEUS

Ser um com Deus: este é o primeiro passo. Mas, o segundo é a conseqüência do primeiro. Cristo sendo a cabeça e nós membros do corpo místico, estamos unidos elo a elo, todos somos um em Deus, uma única vida divina. Se Deus é Amor e está em nós, então não pode ser diferente o nosso amor para com os irmãos. Por isto o amor humano é a medida do nosso amor a Deus. Mas, é algo mais do que o simples amor humano. O amor natural se dirige a um outro, ligado pelos laços do sangue ou por afinidades de caráter ou por interesses comuns. Os outros são "estranhos", que "não nos importam", talvez até por seu jeito antipático, de forma que mantemos a devida distância.

Para o cristão não existe "gente estranha". Próximo é aquele que encontramos em nosso caminho e que mais necessita de nós; indiferentemente, se é parente ou não, se a gente gosta dele ou não, se ele é "moralmente digno" da nossa ajuda ou não. O amor de Cristo não tem limites, ele nunca termina, ele não recua diante da feiúra ou sujeira. Ele velo por causa dos pecadores e não por causa dos justos. E se o amor de Cristo mora em nós, então, façamos como Ele, indo ao encontro das ovelhas perdidas. O amor natural visa a ter a pessoa amada para si, possuindo-a de forma mais exclusiva.

Cristo veio para devolver ao Pai a humanidade perdida; e quem ama com seu amor, este quer os homens para Deus e não para si. Este é, ao mesmo tempo, o caminho mais seguro para possuí-las para sempre; pois, se amamos uma pessoa em Deus, então somos com ela um em Deus, enquanto que o vício da conquista muitas vezes mais cedo ou mais tarde sempre resulta em perda. Há um princípio válido para todas as almas e para os bens exteriores: quem, ambiciosamente, se ocupa em ganhar e apropriar, perde; porém, aquele que tudo oferece a Deus, ganha para sempre.

3.3 - SEJA FEITA A TUA VONTADE

Com isto estamos tocando no terceiro sinal da filiação divina: Ser um com Deus, foi o primeiro. Que todos sejam um em Deus, foi o segundo. O terceiro: "Nisto reconheço que vós me amais, se observardes os meus mandamentos". Ser filho de Deus significa: andar apoiado na mão de Deus, na vontade de Deus; não fazer a vontade própria, colocar todo cuidado e toda a esperança nas mãos de Deus, não se preocupar consigo e com seu futuro. Nisto consiste a liberdade e a alegria dos filhos de Deus. Tão poucos as possuem, mesmo entre os realmente piedosos, mesmo entre os heroicamente dispostos ao sacrifício. Sempre andam encurvados sob o peso dos cuidados e obrigações.

Todos conhecem a parábola dos pássaros do céu e dos lírios do campo. Mas quando encontram uma pessoa que não tem herança, nem pensão e nem seguro e, mesmo assim, vive tranqüilo quanto ao seu futuro, aí meneiam a cabeça como se fosse algo incomum. Contudo, quem esperar do Pai do céu, que cuide a toda hora de seu dinheiro e da condição de vida que ele gostaria de ter, por certo, vai se enganar. A confiança em Deus vai se firmar inabalavelmente quando incluir a disposição de aceitar tudo das mãos do Pai. Pois somente Ele sabe o que é bom para nós. E, se a necessidade e a privação forem mais convenientes do que uma renda folgada e segura, ou insucesso e humilhação, melhor do que honra e reputação, então se deve estar preparado para isso. Se assim fizermos, podemos viver despreocupados com o futuro e com o presente. O "seja feita a vossa vontade", em toda a sua amplitude, deve ser o fio condutor da vida cristã. Ele deve nortear o correr do dia, da manhã até a noite, o correr do ano e de toda a vida. Será a única preocupação do cristão. Todos os outros cuidados, o Senhor assume.

Mas esta única preocupação pertence a nós, enquanto vivermos. Objetivamente, não somos definitivamente firmes para permanecermos sempre nos caminhos de Deus. Assim como os primeiros pais perderam a filiação divina pelo distanciamento de Deus, assim cada um de nós está sempre entre o nada e a plenitude da vida divina. Mais cedo ou mais tarde isto se torna também uma experiência subjetiva. No começo da vida espiritual, quando começamos a nos entregar à direção de Deus, é que sentimos bem forte e firme a mão que nos conduz; de forma clara aparece para nós, o que devemos fazer ou deixar de fazer.

Mas isto não é sempre assim. Quem pertence a Cristo, deve viver a vida de Cristo. Deve-se amadurecer até à idade adulta de Cristo, ele deve iniciar a via-sacra para o Getsêmani e o Gólgota. E todos os sofrimentos que vem de fora, são nada comparados com a noite escura da alma, quando a luz divina cessa de clarear e a voz do Senhor se cala. Deus está presente, porém, escondido e silencioso. Por que acontece isto? São os mistérios de Deus, dos quais falamos, ele não se deixa penetrar completamente. Só podemos vislumbrar algumas facetas desse mistério e, por isso, Deus se fez homem, para voltar e fazer-nos participar da sua vida. Esse é o começo e a meta final.

Mas, no meio se encontra ainda outra coisa. Cristo é Deus e homem e, quem quer partilhar a sua vida, deve fazer parte de sua vida divina e humana. A natureza humana que Ele aceitou, deu-lhe a possibilidade de sofrer e morrer; a natureza divina que Ele possui desde toda a eternidade, deu à sua paixão e morte um valor infinito e uma força redentora. A paixão e morte de Cristo continuam no seu corpo místico e em todos os seus membros. Todo homem tem que sofrer e morrer. Porém, se ele for membro vivo no corpo de Cristo, então, o seu sofrimento e sua morte adquirem pela divindade de seu corpo, força salvadora. Esta é a causa objetiva por que todos os santos desejam sofrer. Não se trata de um prazer doentio de sofrer, Aos olhos da razão natural, isto pode parecer perversidade. À luz do mistério da redenção, contudo, isto se revela de maneira sublime. E assim a pessoa ligada a Cristo, mesmo na noite escura do distanciamento subjetivo de Deus e abandono, persistirá; talvez a divina providência permita o tormento, para libertar a pessoa objetivamente aprisionada. Por isto: "Seja feita a Vossa vontade", mesmo quando na noite mais escura.



Meu amado, minha amada:

Hoje, na quarta e última parte da aula de Santa Teresa Benedita da Cruz (Doutora Edith Stein, filósofa), vemos o trajeto de Jesus desde a manjedoura até a Cruz. Jesus, deitadinho em sua pequena manjedoura de madeira, já estava sendo preparado para, um dia, ser pregado ao madeiro da Cruz. Tanto uma quanto a outra nos revelam a importância do alimento na História da Salvação: o que é uma manjedoura? É o lugar onde se deposita o alimento para os animais. Sem opção, Nossa Senhora e São José tiveram que fazer de uma manjedoura o berço do Filho de Deus, Alimento Vivo que acabava de nascer. E o que é a Cruz? É a Árvore da Vida, é o Lenho onde Jesus se fez Alimento de uma forma definitiva para cada um de nós.

Jamais poderíamos nos alimentar do Pão da Vida sem os madeiros da manjedoura de Belém e da Cruz erguida no Gólgota. Que Deus Todo Poderoso nos ajude a jamais nos esquecermos disto.

Feliz Natal! Deus abençoe você e toda a sua família!


4. MEIOS SALVÍFICOS

Será que podemos falar alto "seja feita a Vossa vontade", quando não temos mais a certeza daquilo que a vontade de Deus exige de nós? Temos meios para permanecer no Seu caminho, quando se apaga a luz interior?

Existem tais meios, e tão fortes, que o erro, apesar das possibilidades, de fato se torna infinitamente improvável. Deus veio para nos salvar, se nos unirmos a Ele, se conformarmos a nossa vontade com a Sua. Ele conhece a nossa natureza. Ele conta com ela e, por isso, nos deu tudo o que nos pode ajudar para alcançarmos o fim. O Deus-Menino tornou-se nosso permanente mestre para nos dizer o que devemos fazer.

Para que a vida humana seja inundada da vida divina, não basta uma vez por ano ajoelhar-se diante do presépio e deixar-se cativar pelo encanto da Noite Santa. Para isto, devemos estar em comunicação diária com Deus, ouvir as palavras que Ele falou e que nos foram transmitidas, e segui-las. E, antes de tudo, rezar, como o Salvador mesmo ensinou e sempre de novo incutiu insistentemente. "Pedi e recebereis". Esta é a promessa segura de atendimento. E quem fala diariamente, de coração, "ó Senhor, seja feita a tua vontade", pode confiar que não desrespeita a vontade divina, onde subjetivamente não tem certeza. Além disso, Cristo não nos deixou órfãos. Ele mandou o seu Espírito que nos ensina toda a verdade; Ele fundou a sua Igreja, que é conduzida pelo seu Espírito, e estabeleceu nela os seus representantes, pela boca dos quais o seu Espírito fala para nós com palavras humanas. Nela uniu os fiéis em comunidade e deseja que um ajude o outro. Assim, não estamos sós, e onde fracassa a confiança em si mesmo e a própria oração, aí ajuda a força da obediência e a força da intercessão.

"E o Verbo se fez carne". Isto se tornou realidade no estábulo de Belém. Mas cumpriu-se ainda de outra maneira. "Quem comer a minha carne e beber o meu sangue, este terá a vida eterna". O Salvador, que sabe que somos e permanecemos humanos, tendo que lutar dia após dia, com fraquezas, vem em auxílio da nossa humanidade de maneira verdadeiramente divina. Assim como o corpo terrestre precisa do pão cotidiano, assim também a vida divina em nós precisa ser alimentada constantemente. "Este é o pão vivo que desceu do céu". Quem come deste pão todos os dias, neste se realizará, diariamente, o mistério do Natal, a Encarnação do Verbo. E este, certamente, é o caminho mais seguro, para se tornar "um com Deus" e de penetrar dia a dia de maneira mais firme e mais profunda no Corpo Místico de Cristo.

Eu sei que para muitos pode parecer um desejo por demais radical. Para a maioria, isto significa começar de novo, uma reorganização de toda a vida interna e externa. Mas deve ser assim! Na nossa vida, devemos criar espaço para o Cristo Eucarístico, para que Ele possa transformar a nossa vida na Sua vida: será que é exigir demais? A gente tem tempo para tantas coisas fúteis, tantas coisas inúteis: ler livros, revistas, jornais, freqüentar restaurantes, conversar na rua 15 ou 30 minutos, tudo isto são "dispersões", onde esbanjamos tempo e força. Não se poderá reservar uma hora pela manhã, para se concentrar, e ganhar força, para enfrentar o resto do dia? Mas, na verdade, é necessário mais que uma hora. Devemos viver de tal maneira que uma hora se suceda à outra, e estas, prepararem as que vierem. Assim, não será mais possível "deixar-se levar", mesmo temporariamente, pelo ara do dia.

Com quem se vive diariamente, não se pode desconsiderar o seu julgamento. Mesmo sem dizer palavras, percebemos como os outros nos consideram. Tentamos nos adaptar conforme o ambiente e, se não conseguimos, a convivência se torna um tormento. Assim também acontece na comunicação diária com o Senhor. Tornamo-nos cada vez mais sensíveis àquilo que Lhe agrada ou desagrada. Se antes, estávamos mais ou menos contentes com nos mesmos, agora isto se torna diferente. E descobriremos em nós muita coisa que precisa ser melhorada e outras que as vezes, são quase impossíveis de serem mudadas. Assim nos tornaremos pequenos, humildes, pacientes e condescendentes com o "cisco no olho de nosso próximo", pois a "trave" no nosso olho nos incomoda.

Finalmente, aprenderemos a aceitar-nos tal qual somos à luz da presença divina, e a nos entregar à divina misericórdia, que poderá vencer tudo aquilo que está além de nossas forças. Da auto-suficiência de um "bom católico", que "cumpre com seus deveres", que "lê um bom jornal" e "vota certo" etc. – mas que, no entanto, pratica o que ele bem quer – há um longo caminho até chegar a viver na mão de Deus e da mão de Deus, na simplicidade da criança e na humildade do cobrador de impostos. Mas quem uma vez andou, não voltará atrás.

Assim, filiação divina quer dizer: tornar-se pequeno e, ao mesmo tempo, tornar-se grande. Viver da Eucaristia quer dizer: sair, espontaneamente da estreiteza da própria vida e penetrar na amplitude da vida de Cristo. Quem visita o Senhor na Sua casa, não quer se ocupar sempre e somente com seus problemas. Vai começar a interessar-se pelas coisas do Senhor. A participação no sacrifício diário nos leva livremente à totalidade litúrgica. As orações e os ritos do culto divino nos apresentam, no decorrer do ano litúrgico, a história da salvação diante da nossa alma, deixando penetrar-nos sempre mais profundamente no seu sentido. E a ação sacrificial nos impregna sempre de novo com o mistério central de nossa fé, o ponto angular da história universal: o mistério da Encarnação e Redenção. Quem poderia com coração aberto participar do Santo Sacrifício sem ser envolvido por este espírito de sacrifício, sem ser tomado pelo desejo, dele mesmo e com sua pequena vida pessoal, se integrar na grande obra do Salvador?

Os mistérios do cristianismo são um todo indiviso. Quando nos aprofundarmos num deles, seremos conduzidos para todos os outros. Assim, o caminho de Belém conduz, seguramente, para o Gólgota; do Presépio para a Cruz.

Quando a Bem-Aventurada Virgem levou a criança para o templo, foi-lhe profetizado que uma espada atravessaria a sua alma, e que esta criança seria a causa da queda e do reerguimento de muitos; um sinal de contradição. É o anúncio da paixão, da luta entre a luz e a treva, que já se manifesta no presépio. Em alguns anos a apresentação do Senhor coincide com a septuagésima, a celebração da encarnação e a preparação para a paixão. Na noite do pecado brilha a estrela de Belém. No esplendor da luz, que sai do presépio, cal a sombra da cruz. A luz se apaga nas trevas da Sexta-Feira Santa, mas se levanta com mais fulgor, como sol da graça, na manhã da ressurreição.

O caminho do Filho de Deus encarnado precisou passar pela Paixão da morte na Cruz para chegar à glória da Ressurreição. Chegar a esta mesma glória da Ressurreição com o Filho do Homem, pela paixão e morte, é o caminho de cada um de nós, de toda a humanidade.


Gisele Pimentel

gisele.pimentel@gmail.com

A Vinha do Senhor



Meu amado, minha amada:


A Liturgia deste 27º Domingo do Tempo Comum nos fala do amor de Deus para com a vinha que Ele plantou aqui, neste mundo, conforme Seus sonhos de justiça, paz e misericórdia. Esta vinha é a "Casa de Israel". E "Israel", na linguagem de Deus, somos eu, você, cada um de nós. Bacana, não é? Isto significa que Deus não faz distinção entre nós, Ele conta conosco igualmente para oferecermos ao mundo os Seus frutos. Israel, para Deus, engloba todos os homens e mulheres de boa vontade que queiram trabalhar na vinha de Deus, na construção do Reino.

Mas uma pergunta não quer calar: que espécie de vinhateiros temos sido? Será que já paramos para pensar na responsabilidade e na confiança que Deus deposita em nós a cada dia?

Os textos deste domingo nos convidam a refletir sobre os dons que Deus tem nos concedido ao longo da nossa vida. Às vezes percebemos melhor quanto tempo passou e o quanto a nossa vida envelheceu conosco, e quando queremos fazer o balanço dos frutos da nossa vida, os resultados são pouco evidentes. O que aconteceu? Fizemos frutificar de forma inteligente e com boa vontade os talentos recebidos? Ou passamos a vida como uma vinha "distraída", sem nos dar conta de que havíamos sido chamados a produzir belas uvas? Ou ainda, gastamos nossa vida como vinhateiros maus que pensavam mais neles mesmos que no amor do patrão pela sua vinha?

Nós recebemos muito de Deus naquilo que somos (uma vinha bela por sua criação e mantida pela Sua providência; Cf. 1ª Leitura) e naquilo que nos é confiado (uma vinha onde somos chamados a trabalhar; Cf. Evangelho). Nos dois casos, somos convidados a produzir um fruto de vida eterna, de santidade e caridade. Este é o tema desenvolvido por São Paulo quando ele exorta os Filipenses a terem em mente "tudo o que é justo e puro, tudo o que é digno de ser amado e honrado, tudo o que se chama virtude e que merece elogios", ou seja, ele os exorta a realizar, assim, obras santas e boas (Cf. 2ª Leitura). Mas "ter em mente" significa, de forma precisa, que isto não vem de nós, mas sim que isto nos é dado. Os dons de Deus são presentes e caímos na armadilha quando nos deixamos fascinar por eles a ponto de nos esquecermos do Doador. Fazendo, assim, esta separação entre os dons e Aquele que é a Fonte dos dons, nós deturpamos a finalidade deles. Seu fruto não é mais a vida, porém a morte: morte do Filho...

Quando Jesus chega neste ponto de Seu discurso, Ele interpela Seus ouvintes: "E então, quando o patrão vier, o que ele fará com estes vinhateiros?" A resposta não tarda a vir: "É a punição que deve prevalecer até fazê-los perecer, que aliás deve ser "de forma miserável". Ou seja, nada de piedade e a vinha estará confiada a outros vinhateiros mais bem intencionados. Mas nós pensamos sempre conforme uma lógica de morte! Aliás, nem uma palavra nesta resposta a respeito do "filho". Teriam os ouvintes de Jesus se esquecido dele? Também eles o matariam?

Para Jesus, a história não pode terminar assim. Este patrão seria verdadeiramente pai se ele agisse com pouco caso em relação ao que acontecera a seu filho? A morte do filho não seria a última palavra face à vingança sugerida pelos ouvintes. O patrão vai, ao contrário, se servir da perversidade desses vinhateiros para revelar que a sua paternidade é mais poderosa que a morte infligida ao seu filho. É a vida que deve (sempre) ter a última palavra. No seio de Israel, a recusa de alguns em acolher Seu Filho permitirá a nosso Pai celestial revelar o poder de Sua misericórdia, construindo o Reino sobre a pedra rejeitada, escolhida como pedra angular: "Isto é obra do Senhor, e é admirável aos nossos olhos" (Mt 21, 42b).

O Reino é a Igreja do Cristo, composta de Judeus e de pagãos convertidos. E esta Igreja inteira é chamada, a exemplo de Israel, a portar um fruto de vida eterna. Cada um de nós é membro desta Igreja desde o dia do nosso batismo, quando fomos "enxertados" em Cristo como os galhos no cepo da vinha (Cf. João 15).

Como o Pai enviou Seu Filho ao mundo para realizar Sua missão redentora, da mesma maneira o Cristo nos envia para colaborarmos com Sua obra de Redenção. É verdade que os frutos dos nossos galhos não são sempre imediatos ou visíveis, mas não podemos duvidar de que, se permanecemos unidos a Cristo como o galho ao cepo, portaremos um fruto que permanecerá. Produzir frutos assim é render glórias a Deus, pois é o mesmo que contribuir com o crescimento do Seu Reino de justiça, de paz e de misericórdia.

"Senhor, a missão que Tu nos confias na História da Salvação não é nada banal. Ajuda-nos a cultivar com carinho a nossa vinha para que ela possa produzir uvas doces e comestíveis para nossos irmãos e irmãs, a fim de que eles descubram a Tua bondade, Tu que és o Dono da vinha e o Senhor da Vida."


Irmão Élie, Famille de Saint Joseph, França


Tradução e Adaptação:

Gisele Pimentel

gisele.pimentel@gmail.com


Fontes:

http://www.homelies.fr/homelie,27e.dimanche.du.temps.ordinaire,2194.html

http://chateaudetouvent.free.fr/images/pied%20vigne%203.JPG

Construção



A catedral de Amiens "trazida à luz" para retomar a policromia original. O interior e o exterior das catedrais góticas eram pintados, em particular as pilastras e as estátuas. As cores vivas causavam um impacto sobre o povo que utilizava apenas vestimentas de cores neutras - cinza, sobretudo.


Meu amado, minha amada:

Trago hoje para você uma mensagem que nos mostra a importância da ação de Deus na nossa vida, de como é essencial deixá-Lo construir o Seu Reino em nós e através de nós, aqui na Terra.

Aproveito para lhes dar uma "amostrinha" da Catedral de Amiens, na França. As catedrais góticas, construídas na Idade Média, tinham por objetivo trazer para a Terra a Jerusalém Celeste. Afinal, se a Igreja é a Casa de Deus, esta deveria ser digna da majestade do Rei que a habita.



Labirinto no interior da Catedral de Amiens - as pessoas que não podiam peregrinar a Jerusalém,
ao menos uma vez na vida, andavam sobre este "labirinto" na intenção da peregrinação à Terra Santa.


Muitas vezes olhamos fotos dessas catedrais, ou assistimos programas sobre elas, mas não sabemos a importância que elas têm para a história da nossa Igreja. Mas, afinal, o que isso tem a ver com o tema de hoje, "Construção"??? Leia a mensagem abaixo, reflita e, tendo um tempinho, escreva-me dando o seu ponto-de-vista a respeito.



"Chegada" do labirinto.

Construção

Nós estabeleceremos a paz
até o final de cada dia
e faremos da bondade
a primeira pedra de cada projeto.

Afastaremos a malícia
cujo veneno alcança até o coração.
Cruzaremos as fortalezas do orgulho
que instalam a divisão
nas profundezas do espírito.
E, assim, seremos transfigurados
na ternura de Deus e no perdão.

Com o Teu Espírito a nos inspirar,

limparemos a terra de tudo o que a mancha,
nós lhe devolveremos seu esplendor original
e sua exuberância exultante
para a alegria de todos os viventes.

Com o Teu Espírito nos inspirando
audácia e imaginação, Senhor,
construiremos a terra humana!

Recebido por e-mail da França.


Tradução:

Gisele Pimentel

gisele.pimentel@gmail.com

Mensagem de Sua Santidade JOÃO PAULO II para a Celebração do Dia Mundial da Paz, 1° de Janeiro de 1993


SE QUERES A PAZ, VAI AO ENCONTRO DOS POBRES



« Se queres a paz... »

1. Qual é a pessoa de boa vontade que não aspira pela paz? Esta é hoje reconhecida universalmente como um dos valores mais elevados a ser procurados e defendidos. Apesar disto, enquanto se vai dissipando o espectro de um conflito atroz entre blocos ideológicos opostos, graves conflitos locais continuam ateando-se em várias regiões da terra. Particularmente, salta à vista de todos a dramática situação atual da Bósnia-Herzegóvina, onde os acontecimentos bélicos continuam a ceifar cada dia novas vítimas, especialmente entre a população civil inerte, e a causar ingentes danos às coisas e ao território. Parece que nada consegue opor-se à violência insensata das armas: nem os esforços conjuntos a favor de uma trégua, nem a ação humanitária das Organizações Internacionais, nem as súplicas de paz que se elevam em coro daquelas terras ensangüentadas pelos combates. Infelizmente, a lógica aberrante da guerra prevalece sobre os reiterados e qualificados convites à paz.

Vai-se também afirmando no mundo, com uma gravidade sempre maior, uma outra séria ameaça à paz: muitas pessoas, mais, inteiras populações vivem hoje em condições de extrema pobreza. A disparidade entre ricos e pobres tornou-se mais evidente, mesmo nas regiões economicamente mais desenvolvidas. Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade, visto que as condições em que se encontra um grande número de pessoas são tais que ofendem sua dignidade natural e comprometem, conseqüentemente, o autêntico e harmônico progresso da comunidade mundial.

Esta realidade emerge em toda a sua gravidade em numerosos Países do mundo: tanto na Europa como na África, Ásia e América. Em várias regiões, muitos são os desafios sociais e econômicos com que os crentes e homens de boa vontade se devem enfrentar. Pobreza e miséria, diferenças sociais e injustiças até às vezes legalizadas, conflitos fratricidas e regimes opressores interpelam a consciência de inteiras populações por toda a parte do mundo.

A recente Conferência do Episcopado Latino-americano, que teve lugar em Santo Domingo no passado mês de Outubro, debruçou-se com atenção sobre a situação da América Latina, e, ao propor novamente, com grande urgência, aos cristãos, a tarefa da nova evangelização, convidou instantemente os fiéis e todos quantos amam a justiça e o bem a servir a causa do homem, sem descuidar nenhuma das suas exigências. Os Bispos lembraram a grande missão que deve congregar os esforços de todos: defender a dignidade da pessoa, empenhar-se por uma eqüitativa distribuição dos bens, promover harmônica e solidariamente uma sociedade onde cada um se sinta acolhido e amado. Estes são, como se pode ver, os pressupostos imprescindíveis para construir a verdadeira paz.

De fato, dizer « paz », é dizer bem mais do que a simples ausência de guerra; é postular uma condição de autêntico respeito da dignidade e dos direitos de cada ser humano, de tal modo que lhe consinta realizar-se plenamente. A exploração dos mais fracos, as preocupantes faixas de miséria, as desigualdades sociais constituem outros tantos obstáculos e empecilhos para a consecução de condições estáveis de uma paz autêntica.

Pobreza e paz: no início de um novo ano, gostaria de convidar a todos para uma reflexão comum sobre as múltiplas conexões entre estas duas realidades.

De modo particular, gostaria de chamar a atenção para a ameaça à paz derivada da pobreza, sobretudo quando esta se transforma em miséria. São milhões as crianças, as mulheres e os homens que diariamente sofrem de fome, de insegurança, de marginalização. Tais situações constituem um grave insulto à dignidade humana e contribuem para a instabilidade social.

A escolha desumana da guerra

2. Atualmente existe uma outra situação, que é fonte de pobreza e de miséria: a guerra entre nações e os conflitos dentro de um mesmo país. Diante dos trágicos acontecimentos que ensangüentaram e ainda hoje ensangüentam, sobretudo por motivos étnicos, várias regiões do mundo, é necessário lembrar o que já disse na mensagem para o Dia da Paz de 1981, que tinha por tema: « Para servir a paz, respeita a liberdade ». Salientava então que o respeito pelas liberdades e pelos direitos dos outros indivíduos e coletividades, é o pressuposto indispensável para a edificação de uma paz verdadeira. A paz obtém-se promovendo povos livres num mundo de liberdade. Conserva, portanto, toda a sua atualidade o apelo que ali lançava: « O respeito pela liberdade dos povos e das nações é parte integrante da paz. As guerras não cessaram de eclodir e a destruição tem atingido inteiros povos e culturas, porque não foi respeitada a soberania de um povo ou de uma nação. Todos os continentes foram testemunhas e vítimas de guerras e de lutas fratricidas, provocadas pela tentativa de uma nação limitar a autonomia de outra » (n. 8).

E acrescentava ainda: « Sem uma vontade decidida de respeitar a liberdade de todos os povos, de todas as nações e de todas as culturas, e sem um consenso global a respeito disto mesmo, será difícil criar as condições da paz (...) Isto supõe, da parte de cada nação e dos seus Governos, um compromisso consciente e público de renunciar às reivindicações e aos planos que possam constituir um atentado contra outras nações; por outras palavras, isto supõe a recusa de subscrever qualquer doutrina de supremacia nacional ou cultural » (Ibid. n. 9).

Facilmente se podem imaginar as conseqüências que derivam também de um tal compromisso para as relações econômicas entre os Estados. Rejeitar qualquer tentação de predomínio econômico sobre as outras nações, significa renunciar a uma política inspirada prevalentemente no critério do lucro, para elaborar, ao invés, uma outra guiada pelo critério da solidariedade com todos, especialmente com os mais pobres.

Pobreza como fonte de conflito

3. É vastíssimo hoje o número das pessoas que vivem em condições de extrema pobreza. Penso, entre outras, nas situações dramáticas de alguns países africanos, asiáticos e latino-americanos. São grupos imensos, com freqüência, faixas inteiras de populações que, nos seus próprios países, se vêem à margem da civilização: entre elas, há um número crescente de crianças que para sobreviver só podem contar consigo próprias. Semelhante situação não constitui somente uma ofensa à dignidade humana, mas representa também uma inegável ameaça para a paz. Um Estado, seja qual for a sua organização política e o seu sistema econômico, permanece em si mesmo frágil e instável, se não demonstra uma contínua atenção pelos seus membros mais débeis, e não faz tudo o que pode para garantir solução pelo menos às suas necessidades mais elementares .

O direito ao desenvolvimento dos países mais pobres impõe aos países desenvolvidos um dever concreto de intervenção em sua ajuda. Assim se exprime o Concílio Vaticano II, a esse respeito: « Cabe a todos os homens o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias (...) Os homens têm obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens supérfluos (Const. past. Gaudium et spes, n. 69). Está clara a advertência da Igreja, eco fiel da voz de Cristo: os bens da terra são destinados a toda família humana e não podem ser reservados para uso exclusivo de poucos (Cf. Enc. Centesimus annus, nn. 31 e 37).

Assim sendo, no interesse da pessoa, e portanto da paz, é urgente incorporar nos mecanismos econômicos aquelas correções necessárias que lhes permitam garantir uma mais justa e eqüitativa distribuição dos bens. Para tanto, não basta o simples funcionamento do mercado; ocorre que a sociedade assuma as suas responsabilidades (Cf. Centesimus annus, n. 48), multiplicando os esforços, com freqüência já significativos, para eliminar as causas da pobreza com suas trágicas conseqüências. Nenhum país pode conseguir sozinho realizar tal empresa. Por isso mesmo, é necessário trabalhar juntos, com a solidariedade requerida por um mundo que se tem tornado cada vez mais interdependente. Aceitando a permanência de situações de extrema pobreza, estabelecem-se as premissas para uma convivência social cada vez mais exposta à ameaça de violências e de conflitos.

Cada indivíduo e cada grupo social tem o direito de ser colocado em condições de suprir às necessidades pessoais e familiares e de participar na vida e no progresso da própria comunidade a que pertence. Quando este direito não é reconhecido, acontece facilmente que os interessados, sentindo-se vítimas de uma estrutura que não os acolhe, reagem com violência. Isto vale, em particular, no caso dos jovens, que, privados de uma adequada instrução e do acesso ao trabalho, ficam expostos em maior grau ao risco da marginalização e do abuso. É bem conhecido de todos o problema do desemprego, especialmente dos jovens, no mundo inteiro, com o conseqüente empobrecimento de um número sempre maior de indivíduos e de famílias inteiras. O desemprego, com freqüência, é ainda o trágico resultado da destruição das infra-estruturas econômicas num País conturbado pela guerra ou por conflitos internos.

Quereria evocar aqui brevemente alguns problemas particularmente preocupantes, que afligem os pobres e, por conseqüência, ameaçam a paz .

Antes de mais, o problema da dívida externa, que, para alguns países, e nestes para as faixas sociais mais pobres, continua a ser um fardo insuportável, não obstante os esforços realizados pela comunidade internacional, governos e instituições financeiras para aliviá-lo. Não são, por acaso, os sectores mais pobres destes países a ter que sustentar o maior peso do reembolso? Uma situação de injustiça como esta pode abrir caminho a um ressentimento crescente, a um sentido de frustração e até mesmo de desespero. Em muitos casos, os próprios governos compartilham o mal estar geral do seu povo, o que se repercute nas suas relações com os outros Estados. Talvez tenha chegado o momento de examinar de novo, dando-lhe a devida prioridade, o problema da dívida externa. As condições de reembolso total ou parcial terão de ser revistas, procurando soluções definitivas capazes de reabsorver plenamente as pesadas conseqüências sociais dos programas de ajustamento. Será preciso também agir sobre as causas do endividamento, unindo a concessão das ajudas à assunção por parte dos Governos do compromisso concreto de reduzir os gastos excessivos ou inúteis o pensamento, no caso, se dirige à.s despesas militares e de garantir que os auxílios cheguem efetivamente às populações necessitadas .

Um segundo problema candente é o da droga: é triste e tragicamente conhecida por todos a sua relação com a violência e o crime. Como é sabido também que, nalgumas regiões do mundo, sob a pressão dos traficantes, são precisamente as populações mais pobres que cultivam plantas para a produção da droga. Os grandes lucros prometidos que, de resto, representam somente uma mínima parte das entradas derivadas de tais cultivos constituem uma tentação a que dificilmente conseguem renunciar os que obtêm uma rendimento decididamente insuficiente do seu trabalho tradicional. Portanto, a primeira coisa a fazer para ajudar os cultivadores a superar um tal estado, é oferecer-lhes meios adequados para sair da sua pobreza.

Um outro problema nasce das situações de grave dificuldade econômica existentes em alguns países. Estas estimulam maciças correntes migratórias para países mais privilegiados, onde, por sua vez, surgem depois tensões que abalam o tecido social. Para fazer frente a estas reações de violência xenófoba, mais do que recorrer a medidas provisórias de emergência, interessa incidir sobre as causas, promovendo, mediante novas formas de solidariedade entre as nações, o progresso e o desenvolvimento nos países de origem dos fluxos migratórios.

Ameaça subtil, mas real à paz é, pois, a miséria: esta, aviltando a dignidade do homem, constitui um sério atentado ao valor da vida e atinge no seu âmago o progresso pacífico da sociedade.

Pobreza como fruto do conflito

4. Nos últimos anos, temos assistido, em quase todos os continentes, a guerras locais e conflitos internos de incrível ferocidade. A violência étnica, tribal e racial destruiu vidas humanas, dividiu comunidades que no passado conviviam serenamente, semeou lutos e sentimentos de ódio. O recurso à violência, de fato, exaspera as tensões existentes e cria outras novas. A guerra nada resolve; pelo contrário, tudo fica seriamente comprometido com a guerra. Frutos deste flagelo são o sofrimento e a morte de inumeráveis pessoas, o esfacelamento das relações humanas e a irreparável perda de imensos patrimônios artísticos e ambientais. A guerra agrava os sofrimentos dos pobres; mais, cria novos pobres, destruindo os meios de sobrevivência, casas, propriedades, e atingindo o próprio tecido do meio ambiente. Os jovens vêem quebrantar-se as suas esperanças de futuro e, com freqüência, passam de vítimas a protagonistas irresponsáveis dos conflitos. Mulheres, crianças, velhos, doentes, feridos são obrigados a fugir, encontrando-se na condição de refugiados, que nada possuem a não ser o que levam consigo . Inermes, indefesos, procuram refúgio noutros países ou regiões, frequentemente tão pobres e conturbados como o seu.

Mesmo reconhecendo que as organizações internacionais e humanitárias estão fazendo muito para ir ao encontro do trágico destino das vítimas da violência, sinto o dever de exortar todas as pessoas de boa vontade a intensificar os esforços. Em alguns casos, de facto, a sorte dos refugiados depende unicamente da generosidade das populações que os acolhem, populações igualmente pobres, senão mais pobres do que eles. Somente com o interesse e a colaboração da comunidade internacional, é que será possível encontrar soluções satisfatórias.

Depois de tantos e inúteis massacres, é de importância fundamental reconhecer, de uma vez por todas, que a guerra nunca serve ao bem da comunidade humana, que a violência destrói e nunca edifica, que as feridas por ela provocadas permanecem sangrando ainda por muito tempo, que, enfim, com os conflitos se agravam as já tristes condições dos pobres e se criam novas formas de pobreza. Está diante dos olhos da opinião pública mundial o espetáculo desolador das misérias causadas pelas guerras. As estarrecedoras imagens, difundidas ainda há pouco pelos meios de comunicação social, sejam pelo menos de eficaz advertência a todos indivíduos, sociedades, estados, e lembrem a cada qual que o dinheiro não deve ser utilizado para a guerra, nem destinado para destruir ou matar, mas para defender a dignidade do homem, para melhorar a vida e para construir uma sociedade autenticamente aberta, livre e solidária.

Espírito de pobreza como fonte de paz

5. Nos países industrializados, as pessoas aparecem hoje dominadas pela corrida frenética à posse de bens materiais. A sociedade de consumo põe ainda mais em evidência o desnível que separa os ricos dos pobres, e com a procura ansiosa do bem-estar arriscam-se a ficar cegos diante das necessidades dos outros. Para promover o bem-estar social, cultural, espiritual e mesmo econômico de cada membro da sociedade é, pois, indispensável cercear o consumo descontrolado de bens terrenos e conter o incitamento a necessidades artificiais. A moderação e a simplicidade devem-se tornar os critérios da nossa vida diária. A quantidade de bens, consumidos por uma parcela pequeníssima da população mundial, produz uma procura excessiva relativamente aos recursos disponíveis. A redução da procura constitui um primeiro passo para aliviar a pobreza, se a ela se somarem esforços eficazes para garantir uma justa distribuição da riqueza mundial.

A este respeito, o Evangelho convida os crentes a não amontoar bens deste mundo passageiro: « não acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e onde os ladrões furam e roubam; acumulai, antes, tesouros no céu » (Mt 6, 19-20). Isto constitui um dever incluído na vocação cristã, da mesma forma que o de trabalhar por debelar a pobreza; é também um meio muito eficaz para o êxito desta empresa.

A pobreza evangélica é muita distinta daquela econômica e social. Enquanto esta tem características cruéis e amiúde dramáticas, sendo padecida como uma violência, a pobreza evangélica é livremente escolhida pela pessoa que pretende assim corresponder à advertência de Cristo: « Qualquer de vós que não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo » (Lc 14, 3 3 ) .

Esta pobreza evangélica constitui uma fonte de paz, porque graças a ela a pessoa pode criar uma justa relação com Deus, com os outros e com a criação. A vida de quem se põe nesta óptica torna-se, assim, testemunha da absoluta dependência da humanidade face a Deus que ama todas as criaturas, e os bens materiais acabam por ser reconhecidos por aquilo que são: um dom de Deus para o bem de todos.

A pobreza evangélica é uma realidade que transforma os que a acolhem. Eles não podem permanecer indiferentes diante do sofrimento dos indigentes; pelo contrário, sentem-se impelidos a compartilhar ativamente com Deus o amor preferencial por eles (Cf. Enc. Sollicitudo rei socialis, n. 42). Estes pobres segundo o Evangelho, estão prontos a sacrificar os seus bens e a si próprios, a fim de que outros possam viver. O seu único desejo é viver em paz com todos, oferecendo aos outros o dom da paz de Jesus (Cf. Jo 14, 27).

O Divino Mestre, com a sua vida e as suas palavras, nos ensinou as exigências típicas desta pobreza que predispõe para a verdadeira liberdade. Ele « que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo » (Fil 2, 6-7). Nasceu na pobreza; criança ainda, foi obrigado a partir para o exílio com a sua família para escapar à ferocidade de Herodes; viveu como alguém que « não tem onde reclinar a cabeça » (Mt 8, 20). Foi difamado como um « glutão e bebedor, amigo de publicanos e pecadores » (Mt 11, 19) e padeceu a morte reservada aos criminosos. Chamou bem-aventurados os pobres, assegurando que deles é o Reino de Deus ( Cf . Lc 6, 2 0 ) . Lembrou aos ricos que o engano da riqueza sufoca a Palavra (Cf. Mt 13, 22), e que é difícil para eles entrar no Reino de Deus ( Cf . Mc 10, 2 5 ) .

O exemplo de Cristo, não menos do que a Sua palavra, é norma para os cristãos. Nós sabemos que, no dia do juízo universal, todos sem distinção seremos julgados sobre o nosso amor concreto pelos irmãos. Mas, será no amor realmente exercido que muitos, naquele dia, descobrirão ter, de fato, encontrado Cristo, mesmo não O tendo conhecido antes explicitamente (Cf. Mt 25, 35-37).

« Se queres a paz, vai ao encontro dos pobres! ». Possam os ricos e os pobres reconhecerem-se irmãos e irmãs pela partilha dos seus bens, como filhos de um só Deus que a todos ama, que quer o bem de todos, que oferece a todos o dom da paz !

Vaticano, 8 de Dezembro do ano 1992.