quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A Bíblia aberta de Marc Chagall - Chagall e a Religião

No Século XX, quando a maior parte dos artistas ocidentais deixam de pintar as passagens bíblicas rompendo com a rica herança dos grandes mestres, Marc Chagall, criado na cultura yiddish, se apaixona por esta tarefa. Sem se preocupar com a Lei Mosaica que proíbe na tradição judaica a representação da figura humana em assuntos religiosos. O menino russo de Vitebsk, exilado em Paris, mostra uma grande liberdade tanto para inventar figuras pertencentes ao ecumenismo, quanto para dirigir ao mundo uma mensagem de paz.

Marc Chagall nasce em 1887 em Vitebsk, na Bielorússia, numa família judia humilde, religiosa e muito ligada ao folclore. Nessa época, a cidade possui uma importante comunidade judaica. A mãe de Chagall tem uma mercearia e seu pai vai todas as manhãs à sinagoga, onde é empregado, enquanto que ali seu avô é preceptor e chantre. O jovem pintor é criado na paz e ternura de sua mãe, judia, que lhe ensina a ler e a amar a Bíblia e os Homens. Chagall entra para a Escola de Belas Artes em São Petersburgo, partindo depois rumo a Paris em 1910. Quatro anos mais tarde, ele pensa em voltar a Vitebsk para uma curta visita, mas a Primeira Guerra Mundial o impede de voltar a Paris. Durante este período, Chagall pinta sobretudo a vida da comunidade judaica, que é perseguida pois é considerada pelo Estado Maior Russo como suspeita de espionagem. A família de Chagall oferece hospitalidade a inúmeros judeus expulsos, especialmente os vindos da fronteira com a Lituânia. Em 1920, ele se instala em Moscou, trabalhando em suas pinturas murais e na decoração do “teatro judaico”. Após um pedido de Ambroise Vollard, célebre marchand e editor de livros de artistas da vanguarda, Marc Chagall inicia uma série de ilustrações sobre a Bíblia em 1930. Este trabalho monumental lhe permitirá interpretar pessoalmente esses textos sagrados, que ele define como “a maior fonte de poesia de todos os tempos”.

Pouco depois de confirmar o pedido de Vollard, Chagall viaja até a Palestina e descobre uma nova maneira de representar os personagens bíblicos: sem a menor idealização, as silhuetas são rígidas, carregadas do peso do destino, de aspecto simples e despojado, como repletas de espiritualidade. Aliás, Chagall realiza ali um conjunto de pinturas que chamará mais tarde de “notas” representativas das paisagens palestinas, como a representação do Muro das Lamentações em sua tela “Jerusalém”. Paralelamente, ele pinta cerca de quarenta guaches preparatórios antes de começar, no ano seguinte, a realização de uma série de águas-fortes destinadas aos livros do Gênesis e do Êxodo. Assim, 105 gravuras mostram diversas cenas-chave do Antigo Testamento, onde profetas, patriarcas, guerreiros e reis são os personagens principais.

Em 1939, quando Vollard morre, Chagall interrompe suas ilustrações para a Bíblia, e só as retomará em 1952, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Quando a ideologia nazista e o antissemitismo se espalharam pela Alemanha na década de 1930, Chagall percebeu os perigos que ameaçavam seu povo e a Europa como um todo. Esta época marcante aos olhos do pintor está refletida em suas telas, como A Crucifixão Branca, de 1938, telas em que Chagall faz um link entre a perseguição de Jesus e a que os judeus sofreram durante a Segunda Guerra Mundial. As últimas ilustrações bíblicas que ele realiza após a Guerra (A Tomada de Jerusalém, As Lamentações de Jeremias etc.) testemunham igualmente o indizível sofrimento do povo judeu. Em algumas de suas gravuras, como Crucificação em Amarelo (1942-1943), A Queda do Anjo (1923-1947), ou O Êxodo (1952-1966), Chagall mistura motivos cristãos (a presença de Jesus) e judaicos (judeu errante, Torá etc.). Através deste casamento original, o artista quis transmitir uma mensagem de paz inter-religiosa, mas também entre as religiões e as nações, após os horrores que marcaram a História. 

Em 1954 Chagall inicia uma série de 17 quadros que comporão a Mensagem Bíblica. Para realizar estes últimos, o pintor se inspira no Antigo Testamento, que ele interpreta à sua maneira, às vezes transgredindo o texto de referência. Os doze primeiros quadros constituem um ciclo: seus temas são episódios que se desenvolvem no tempo cronológico da narrativa bíblica. Ele termina este trabalho em 1966 e o doa ao Estado, que expõe as obras no Musée National Marc Chagall (Museu Nacional Marc Chagall) em Nice, inaugurado em 1973. Este museu nasceu da vontade do artista de reunir num único lugar, construído para este fim, seu mais importante trabalho pessoal sobre a Bíblia. Nos anos 1950, e até o fim de sua vida, Chagall recebeu inúmeras encomendas de decorações e vitrais de lugares de culto católico, protestante ou judaico (judeu). Com a convicção de que, enquanto artista, ele pode e deve enviar uma mensagem de paz entre as nações e as religiões, Chagall se sente confortável para navegar livre de correntes entre crenças e religiões, participando da renovação das artes sacras. Realiza vitrais para a Catedral de Metz (1960), em que evoca o Antigo Testamento; na Catedral de Reims, evoca os dois Testamentos, bem como os principais momentos da cidade. O último vitral, que é a Árvore de Jessé, representa um esquema da árvore genealógica presumida de Jesus de Nazaré a partir de Jessé, pai do Rei Davi.  Chagall realizou igualmente vitrais para a sinagoga do hospital de Hadassah, em Jerusalém, e As Doze Tribos de Israel (1962). Seus vitrais estão presentes em países do mundo todo, como por exemplo em Israel, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, França e Suíça. Desde então, as obras monumentais (vitrais, mosaicos, tapeçarias, pinturas murais etc.) se multiplicam: das pinturas murais para o Metropolitan Opera de New York aos vitrais para a igreja de Fraumünster de Zurich. Alguns anos mais tarde, Marc Chagall morre em 28 de março de 1985, em Saint-Paul de Vence, deixando um legado bastante diversificado onde, todavia, a religião permanece onipresente. Por sua original obra religiosa, Chagall quis transmitir uma forte mensagem “em nome da liberdade de todas as religiões”. 

CHAGALL E A BÍBLIA 

É a história de uma obra singular. No Século XX, enquanto a maior parte dos artistas ocidentais renunciam a pintar temas bíblicos rompendo com a rica herança dos grandes mestres, Marc Chagall, criado na cultura yiddish, se apaixona por esta missão, sem receio da Lei Mosaica que, na tradição judaica, proíbe a representação da figura humana para fins religiosos. O menino russo de Vitebsk, exilado em Paris emprega, ao contrário, uma grande liberdade, tanto para inventar figuras impregnadas de ecumenismo, quanto para enviar ao mundo uma mensagem de paz. 

“Chagall desarmou as armadilhas do pertencimento”, observa Laurence Sigall, diretora do Museu de Arte e História do Judaísmo, em Paris, que numa apaixonante exposição (1) decifra essas interpretações muito pessoais da Bíblia. 

Desde sua iniciação na Rússia o artista, confrontado com os pogroms (2), escolhe evocar esses dramas por meio de assuntos religiosos, como o Gólgota ou o Êxodo. Todavia a exposição só começa em 1930, quando o marchand parisiense Ambroise Vollard encomenda a Chagall uma centena de águas-fortes para ilustrar a Bíblia que, desde então, ocupa um espaço central em sua obra, que subsistirá à publicação do livro, em 1956, pelo editor de arte Tériade (3). 

Rusticidade naïve 

Para preparar suas gravuras e os contrastes de branco e preto, estranhamente Chagall inicia pela cor. Em cerca de quarenta guaches, dos quais a metade é apresentada na exposição, ele dá asas à sua imaginação. Deus recebe as feições de um anjo barbudo, de uma brancura deslumbrante. Moisés, invocando as pragas que se abaterão sobre o Egito, se parece com um gigante. Transpostas sobre o couro, estas imagens são então refinadas por múltiplos retoques com ponta seca ou polidor, conforme se vê em diversas estampas até a edição final das 105 águas-fortes reunidas juntamente a trechos da Bíblia de Genebra de 1638. 

A série que o museu atualmente expõe é aquela – inédita – que Chagall oferece a sua esposa, Valentina Brodsky, incrementada por guaches em cores vivas. Fiel ao judaísmo, o artista se limita ao Antigo Testamento, sem representar certos episódios, como o Pecado Original ou Caim e Abel. Chagall ama dizer que esses heróis bíblicos o acompanham tanto durante a infância que, para ele, “são como tios e tias”. 

A influência de Rembrandt, de El Greco, ou dos ícones, aflora em determinadas gravuras, conjugando-se com uma rusticidade naïve – personagens um pouco volumosos, gestos deliberadamente simplificados – que Chagall pegou por empréstimo dos artistas da Escola de Arte de Bezalel, em Jerusalém. 

O indizível sofrimento de todo o povo judeu 

A realização dessas águas-fortes também são para Chagall uma aventura espiritual iniciada em 1931 com uma viagem à Palestina. “Aqui, a gente sente que o judaísmo e o cristianismo formam uma só e mesma família. Todos formavam um só, e vieram demônios que destruíram e dividiram tudo”, escreve então Chagall, pensando sobre os eventos que presencia. 

O antissemitismo que ele conheceu quando criança na Rússia ressurgiu na Europa. Após ter obtido a nacionalidade francesa em 1937, o Governo de Vichy a retira de Chagall em 1941, e após isso ele se exila nos Estados Unidos.

Suas ilustrações para a Bíblia, interrompidas em 1939 na ocasião da morte de Vollard, são retomadas somente ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1952, quando Chagall dá às suas últimas pranchas uma tonalidade assombrada pela Shoah. A Tomada de Jerusalém mostra uma cidade em chamas e uma cena do Êxodo repleta de cadáveres, ao passo que As Lamentações de Jeremias remontam ao indizível sofrimento de todo o povo judeu.

 “Um ideal de fraternidade e de amor”

O espectro do Holocausto ressurge em várias grandes telas, como na “Crucificação em amarelo”

(1942-1943), na “Queda do Anjo” (1923-1947), ou no “Êxodo” (1952-1966). Temáticas cristãs e judaicas são misturadas num casamento bastante original. Ao horror e às mágoas da História, o artista responde através de uma mensagem de paz interreligiosa. É neste sentido que, em 1949, ele aceita a oferta do Padre Couturier, que estava nos Unidos, para participar da decoração da igreja do Plateau d’Assy em Haute-Savoie: “Em nome da liberdade de todas as religiões”,  conforme suas palavras. 

Outros vitrais serão realizados para prédios católicos e protestantes na França (especialmente as Catedrais de Reims e Metz), na Alemanha, Suíça, Estados Unidos, sem esquecer aquelas da sinagoga do Hospital Hadassah de Jerusalém em 1960, em que o artista evita toda e qualquer figura humana. 

A série das 17 grandes obras da “Mensagem Bíblica” pintadas entre 1954 e 1967 para capelas abandonadas de Vence (4), onde Matisse acaba de decorar a Capela do Rosário, amplia esta obra de reconciliação. “Eu quis, diz Marc Chagall, que os homens tentem ali encontrar uma certa paz, uma certa religiosidade, um sentido para a vida ( ) um ideal de fraternidade e de amor como meus traços e minhas cores sonharam.” 

Sabine GIGNOUX

 Tradução e Adaptação:

Gisèle do Prado

(1)  À lire, le remarquable catalogue, Skira, 197 p., 35 euros.

(2) Pogrom é uma palavra russa que significa "causar estragos, destruir violentamente". Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto no Império Russo como em outros países.

(3) Tériade

(4) Atualmente no Museu Nacional da Mensagem Bíblica Marc Chagall de Nice. 

http://www.sacre-coeur-tourcoing.net/chagall/a-religion.html